O Mundo aos olhos de uma menina de 30

Antes que o Sol se levante

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Desde que nos mudamos, há pouco mais de dois anos, vez ou outra sou surpreendida com um show particular, geralmente aos fins de semana.

Meu vizinho acorda cedo. Gosto de dizer que ele levanta antes mesmo que o Sol. Retira o lixo, alimenta os pássaros, que são livres, mas sempre visitam a nossa rua, nosso bairro. Talvez pelo fato de termos algumas árvores e plantas em quase todas as casas ou por ser um lugar pacato e silencioso na maior parte do tempo.

No entanto, acredito que eles venham mesmo, por causa da música. Sim! A música.

Nesses esporádicos dias em que o vizinho do 295 levanta, antes mesmo que o Sol nasça e rapidamente conclui seu ritual matinal de rotinas domésticas e cuidados com os pássaros, sempre rola música.

Eu, na condição de ouvinte assídua, me acomodo na janela e aguardo ansiosamente o show. Não tenho uma visão privilegiada, não consigo vê-lo, só os pássaros – que após os cuidados se tornam plateia – tem essa vantagem. Seus equipamentos e instrumentos musicais ficam organizados em uma parte externa da casa que da minha janela não tenho acesso.

Não importa, eu ouço! Ouço e aprecio. Não são ensaios matinais. O vizinho do 295 não é integrante de nenhuma banda, não é professor de música e não sobrevive dessa arte. Ele simplesmente se diverte, vive ao seu modo e nos presenteia com shows. Ora matinais, ora noturnos. Sem divulgação ou alarde, mesmo assim sempre houve e haverá plateia. Sejam os pássaros ou nós, vizinhos que se deixam embalar pelo repertório versátil e único.

Na maioria das vezes ele canta a mesma canção por quinze, vinte minutos. Mas não me atrevo a gritar do meu camarote particular pedindo que toque e cante outra. Imagino que os pássaros prefiram aquela. Para não chatear seu público mais fiel, ele atende o pedido, sem questionar.

Como tudo está conectado, interligado, as canções sempre trazem mensagens que naquele momento eu gostaria de ouvir. Me deleito.

Nesses dias de distanciamento social pessoas no mundo todo tem vivido e experimentado de suas sacadas, varandas e janelas – ou camarotes particulares, como eu gosto de chamar – a delícia de participarem de um show particular. Estão descobrindo vizinhos que cantam e encantam.

Aproveitando dessa sensação gostosa que é viver cercado por gente de verdade, que vive a vida com leveza e esperança, após uma semana dura de trabalho e que não perde o entusiasmo mesmo agora, diante do caos. Distanciar-se e silenciar as nossas urgências fez o Mundo perceber que as pessoas são generosas, talentosas, resilientes, entre tantas outras qualidades.

Não porque estão confinadas. Elas são assim, é genuíno. Nós é que nunca paramos pra ouvir, aplaudir e se deliciar com os shows da casa ao lado.

Millane Martineli

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